Miguel Palma
Miguel Palma (n. 1963, Lisboa)
Sementeira, 2006
Máquinas em ruína ou a reciclagem crítica, de David Santos
«Como um encantador de serpentes, Miguel Palma (Lisboa, 1963) domina os códigos que denunciam as fragilidades da simbologia capitalista, oferecendo-nos, a partir desse jogo de ilusões invertidas, uma visão corrosiva sobre o curto-circuito do progresso. Com um trabalho onde convergem a ironia, a crítica social e política e ainda uma evidente ludicidade da experiência artística e receptiva, o artista aborda temas como o colapso das utopias científicas, o logro das políticas sociais de origem positivista e as ambiguidades inerentes ao sistema económico e financeiro contemporâneo. Para isso, dois elementos funcionam como elos de conexão entre quase todos os seus trabalhos: as máquinas (da máquina do tempo à máquina capitalista, do automóvel aos telescópios, das miniaturas às armas de precisão) e o valor da obra de arte (das variantes sobre os critérios de valoração artística à inexorável efemeridade da sua objectualidade), índices, afinal, da nossa relação com o mundo e os seus significados aparentemente mais estáveis e seguros.
«Projectando inesperados objectos funcionais, máquinas inquinadas, sistemas ópticos reconvertidos, engenhosas tarefas motorizadas, sistemas magnéticos, mecanismos giratórios (pendulares, circulares ou gravitacionais), dispositivos electrónicos e outros sistemas mecânicos particularmente excêntricos, falíveis e derrisórios, Miguel Palma é hoje reconhecido como um dos artistas portugueses mais decisivos da geração de 90, apresentando, desde os projectos “Engenho” e “Olho Mágico” (ambos de 1993) – essas máquinas invasoras mas trôpegas, instaladas sob a óptica de uma instância anti-espectacular – uma simbologia miniatural de aparato lúdico que assume, quase sempre, um sentido crítico sobre os desequilíbrios protagonizados pela sociedade pós-industrial.
«Neste sentido, “Sementeira” […] repropõe, num aparato processual contemporâneo e interdisciplinar, uma linhagem temática que faz referência ainda ao sentido de arte política defendida pela cultura neo-realista. Por um lado, o cruzamento entre a ambiguidade belicista desse aparelho que projecta sementes de um modo maquinal e a imagem ancestral do trabalho agrícola, enquadrado neste caso particular pela Lezíria do baixo Ribatejo […].
«Não tanto pela sua inerente leitura política, mas sobretudo pela reconversão formal e funcional do objecto a que faz referência, “Sementeira” (2006) constitui-se como peça de grande aparato tridimensional, assumida na proximidade visual-provocatória da recepção do MNR, entre a inactividade escultural, e por isso alvo de observação apaziguadora, e a iconografia imaginada no significado imediato da sua lógica mecânica de agressão. Este dispositivo de aparência bélica foi construído a partir de alfaias agrícolas e dispara projécteis carregados de sementes. Ou seja, é um canhão com um ADN agrícola que semeia de forma diferente e permite o cultivo em áreas desertificadas por fogos e de difícil acesso.
«Simbolicamente associado às armas terrestres anti-aéreas, este “canhão” surge aqui transformado em “arma” que, em vez de balas e fogo, projecta tão-só sementes, isto é, em vez de sofrimento e morte, espalha apenas a vida que se espera protegida e dinamizada pela natureza. Se é justo afirmar que a morfologia mecânica do objecto nos mantém presos ao seu significado militar, não deixa de ser igualmente verdade que ao investirmos uma maior atenção nessa “estranha” forma de arte, percebemos desde logo estar perante um objecto ambíguo e subtilmente distanciado dos rigores do combate.
«Da evocação de uma memória conflitual à estranheza introduzida ou projectada pelo título assumido, Miguel Palma procura cruzar valores e significados aparentemente opostos e inassociáveis. A vida e a morte, o crescimento progressivo da planta e a destruição violenta do que se desenha como alvo a abater, o cultivo e acompanhamento diário de sementes transformadas em vida e a ameaça imediata que se projecta a partir de uma mira apontada. Uma vez mais, o artista busca no mesmo objecto e no seu regular sistema mecânico e simbólico uma significação paradoxal, subterrânea e mais complexa, ainda que desde sempre presente nas suas próprias características, o que nos ajuda a relativizar os usos e interpretações que dele podemos fazer.
«É imbuído deste sentido de comunhão entre oposições físicas, naturais, mecânicas, simbólicas, culturais e políticas, que o trabalho de Miguel Palma se afirma como “máquina” de reciclagem crítica, onde a aparente leveza do jogo, espécie de pequena brincadeira – inclusive no sentido infantil que a expressão contém –, parece esconder a profundidade desses valores que se reconfiguram perante os novos significados produzidos. Por outro lado, há aqui uma evidente convocação do performativo e da própria interactividade, não apenas em sentido literal, pois o ímpeto de observação destes objectos é acompanhado por uma vontade de acção lúdica, como também em sentido figurado, dado que a imaginação, isto é, a imagem em acção, se associa às hipóteses de leitura que o cérebro cria. [O] acto performativo concreto, […] em que o próprio artista [utiliza] a sua máquina para projectar sementes num jardim de Vila Franca de Xira [ajuda] a criar novas oportunidades de vida natural. Porém, todo o aparato mecânico desenvolvido pela “Sementeira” em pleno jardim público assemelhar-se-á a um exercício militar, pois a dimensão física dos disparos de sementes em muitos aspectos se mantém ligada ao fogo de guerra. Desde o ruído e sequencialização de disparos ao posicionamento do atirador e do próprio público, toda uma encenação de cariz militarista se confirma neste exercício que é, afinal, apenas lúdico, humanista e de sentido ecológico. Disparar para a vida é o lema e a acção real desta obra de Miguel Palma. Uma série de serigrafias de grande escala, […] pontuam registos sobre a performance […], alimentando assim a expectativa sobre os seus contornos. O conjunto de imagens que enquadra a “Sementeira” promove ainda uma natural aproximação ao seu estatuto de obra de arte, pois a identificação ao nível da imagem bidimensional dos quadros expostos ajuda a confirmar uma espécie de artisticidade dessa “máquina” sementeira. …
In The Return of The Real 6, Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira, 2008