Trienal
Uma excelente refeição prepara-se, apresenta-se e consome-se. Prevalece unicamente como memória de uma experiência. É efémera. Mas não é só isso! É também um universo de sensações, de disciplina e perfeccionismo natural atravessado de forma singular, e durante esse trajecto é ter alguém com quem compartilhar. Uma peça de arte tem uma força emocional que se exprime através da imaginação, dialoga ao nível do abstracto, do intangível, das questões subjectivas. Actualmente a arte contemporânea está centrada no debate articulado entre a produção de subjectividade e a forma como compreendemos as diferentes culturas sociais. É criado um diálogo entre a obra e o observador.
Dentro do espaço museológico e galerístico Rirkrit Tiravanija, a dupla Sara Li e Ana K ou Marilyn Minter empregam a cozinha, os alimentos e o acto de comer como um meio de representação plástica e conceptual. Nestes momentos as obras de arte exploram o papel social do artista na sociedade contemporânea no seguimento do pensamento de Walter Benjamin, delineado em O Artistas como Etnógrafo por Hal Foster, e um relacionamento sobre o qual, o crítico e curador francês, Nicolas Bourriaud, no início do século, descreveu como Estética Relacional.
Muitos dos artistas contemporâneos, como John Baldessari, Paul McCarthy, Ernesto Neto, Tatsumi Orimoto, Sam Taylor-Wood ou Marta Wengorovius seguem a tradição plástica histórica sobre o acto gastronómico. A transmissão dos costumes e das crenças humanas representada em obras já da história da arte, como A Última Ceia (1498), de Leonardo da Vinci; durante o século XVI, as pinturas concebidos por Giuseppe Arcimboldo, os retratos da vida e costumes dos camponeses ou as fraquezas do espírito humano por Pieter Brueghel o Velho; Mulher a Fritar Ovos (1618), de Velázquez; Os Comedores de Batatas (1885), de Vincent van Gogh; e no século vinte, algumas pinturas de Salvador Dali e peças de Marcel Broodthaers.
Mais recentemente, em 2002, inscrito no programa da Capital Europeia da Cultura, o Centro de Arte de Salamanca (Espanha) apresentou a exposição colectiva Comer o no comer, a qual contou com a participação da artista Ana Pérez-Quiroga. Um banquete estético onde as relações entre a arte e a comida eram o prato principal. Em 2007, Ferran Adrià, chef do restaurante elBulli (Espanha), foi convidado para participar na Documenta 12, (este evento realiza-se a cada cinco anos em Kassel, na Alemanha). Comida para pensar, Pensar sobre el comer, coordenado pelo artista, Richard Hamilton, e pelo director da Tate Modern (Londres), Vicente Todolí, comenta sobre o universo criativo de Ferran Adrià, a cozinha de vanguarda e a sua relação com o mundo da arte através do festival germânico (depois de cem dias, em 2007, tinha recebido mais de setecentos e cinquenta mil visitantes, dos quais um terço vinha fora da Alemanha).
A Trienal do Vale do Tejo, organizada pela associação nada na manga, inscreve-se neste domínio. O de ser um laboratório activo e crítico sobre formas de interpretação das práticas do quotidiano enquanto trabalha dentro do contexto onde se encontra inserida, da realidade territorial, com as pessoas, com a sua paisagem e história. O filósofo italiano Giorgio Agamben na sua análise sobre as inusuais circunstâncias da extensão do poder, em o estado de excepção [State of Exception], examinar as potenciais transformações pragmáticas nos regimes vigentes. Quer em Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life e em State of Exception Agamben teoriza sobre o enquadramento da excepção dentro da Lei. A excepção é singular. Está só existe exterior à lei enquanto for possível inseri-la na Lei e relacioná-la com a lei humana. A excepção não esta fora da lei. O exemplo, que é particular e universal, por vezes é posicionado como fora da lei. Neste sentido a trienal é uma experiência exotérica, objectiva e física, pois encontra-se fora do centro, é exterior aos discursos e pragmáticas institucionalizadas. Não é elitistas e muito menos popular, como também não é um exemplo.
Esta manifestação cultural apresenta-se como uma plataforma composta de sobreposições e descontinuidades entre as peças de arte apresentadas pelos vários artistas convidados ao intervirem nos diferentes espaços (físicos e intelectual): com Joana Vasconcelos um elemento de identificação nacional, o garrafão, está em permanente mutação natural; Kader Attia apresenta um território definido mas perecível concebido em couscous; o mundo dos organismos em movimento, aberto e infinito, peças de Per Barclay e Nicolas Boulard, onde os elementos utilizados são facilmente perceptíveis e reconhecíveis; interpretado por Adel Abdessemed, os dezassete quilómetros de distância que nos ligam a outra cultura enraizada nos hábitos e costumes locais, o norte de África; a celebração relacionado com o sacrifício de um animal concebida e registada por Carlos Noronha Feio; ou a grande gala social à volta de uma enorme baguette concebida pelo casal de chefs/artistas Doug Fitch e Mimi Oka, são alguns das peças presentes neste diálogo transversal entre arte, gastronomia e o vinho pontuados por elementos históricos referentes à região.
Assim, os discursos conseguidos entre a arte, os vinhos e a comida numa paisagem de características únicas – as adegas e outros espaços agrícolas localizados ao longo rio do Tejo: Casa Cadaval (Muge, Salvaterra de Magos), Quinta da Alorna, Casal Branco e Falua (Almeirim), Casa-Museu dos Patudo (Alpiarça), e Vale d’Algares e DFJ Vinhos (Vila Chã de Ourique, Cartaxo) – justifica o posicionamento da trienal como um evento exterior à paisagem local, mas inserido no contexto onde se encontra.
Como na produção de um vinho ou na confecção de uma experiência gastronómica, também a arte decorre e percorre os mesmos processos criativos: conceptualização de uma ideia; manipulação dos materiais (solos e castas, obtenção de sabor, etc.); e a criação de uma obra cujo resultado último é a sublimação e a estimulação dos sentidos de quem a prova (apreciação e valorização) – o «eu gosto» ou o «eu não gosto», ou seja, a educação do gosto individual.